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O contraste entre as demandas relacionadas à judicialização da saúde mostra a complexidade do problema que será abordado no Ciclo de Debates Judicialização da Saúde, que a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) realiza entre os dias 14 e 15 de setembro. Alguns dramas ganham repercussão nacional, como o dos bebês Pedro Gomes de Oliveira e Sofia Gonçalves de Lacerda. Ambos nasceram com problemas graves, que tornavam necessários transplantes múltiplos de órgãos, que teriam de ser realizados nos Estados Unidos, a um custo milionário.
Pedrinho, nascido em Eunápolis (BA), morreu no Hospital Felício Rocho, em Belo Horizonte, em 9 de agosto de 2015, poucos dias depois de conseguir na Justiça uma liminar para que a União custeasse sua cirurgia de transplante de intestino no Jackson Memorial Hospital, na Flórida.
Nesse mesmo hospital, em 10 de abril, a menina Sofia passou por um transplante multivisceral, que incluiu estômago, fígado, pâncreas e intestinos. Só o transplante custou US$ 1,2 milhão (cerca de R$ 4,2 milhões), custeado pelo governo brasileiro após decisão judicial favorável à criança. Depois da cirurgia, a menina chegou a receber alta, mas voltou a ser internada mais de uma vez por causa de uma infecção virótica. Depois de um ano e nove meses de luta, a menina Sofia morreu no Jackson Memorial Hospital, em Miami, nos Estados Unidos, em 14/9/15, por causa de uma parada cardíaca.
Há casos mais próximos, menos conhecidos, mas igualmente dramáticos. Os dois filhos de Geralda Francinete Pereira nasceram com mucopolissacaridose (MPS), uma doença rara, congênita, que causa a deficiência na produção de uma enzima para digerir um tipo de açúcar. As consequências podem ser muitas, como aumento do fígado e do baço, deformidade óssea, limitação articular e infecções respiratórias. O filho mais velho de Geralda, Alex Alves de Oliveira, faleceu em 2007, aos 15 anos de idade. Sua filha, Aline Cristina Pereira, que tem 19 anos, se trata há sete.
Uma vez por semana, Geralda e Aline viajam 280 quilômetros de Patrocínio (Alto Paranaíba), onde vivem, para Moema (Centro-Oeste de Minas), cidade que é referência nesse tratamento. Aline enfrenta quatro horas de infusão intravenosa para repor a enzima que não produz, por meio do medicamento Naglazyme, que não é fornecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). São dez frascos por semana, a um custo de R$ 300 mil por mês. Geralda é dona de casa, se dedica a cuidar da filha e é separada. O remédio não cura, mas alivia o sofrimento, algo que ela só conseguiu na Justiça. “Com o tratamento, a respiração e a pele de Aline melhoraram. Antes, ela quase não conseguia andar. Hoje ela anda distâncias curtas”, conta a mãe.
Ao lado desses casos dramáticos, a legislação tem garantido o atendimento de demandas, no mínimo, curiosas. Ex-secretário de Estado de Saúde, o deputado Antônio Jorge (PPS) se recorda das decisões judiciais que se viu obrigado a atender. “Há ações para spa, coxinhas para dieta, depilação a laser, tudo isso houve em nossa gestão. Parece anedotário, mas é a questão do direito que não está regulamentado com mais precisão”, afirma.
Justiça obrigou município a pagar filtro solar e chicletes
Em nível municipal, a situação não é diferente. Em depoimento à Comissão de Saúde da ALMG em abril deste ano, a secretária de Saúde de Curvelo (Região Central do Estado), Rejane Valgas Oliveira Galvão, disse que o município foi obrigado a atender demandas judiciais para fornecimento de chicletes para deixar de fumar e filtro solar, prejudicando repasses financeiros para o atendimento de urgência ou a atenção básica à saúde.
"Curvelo, em 2013, gastou R$ 570.787,54 com ações judiciais; em 2014, R$ 659.819,99; e até abril de 2015, especificamente até o dia 20, já gastei R$ 137.102,02. Em 2014, paguei em demandas judiciais, muitas vezes questionáveis, o que repasso em um mês ao pronto-atendimento”, afirmou a secretária. Ela acrescentou que, das sentenças cumpridas, 48% se referem a medicamentos e 41,49%, a dietas e suplementos alimentares.
Para o deputado Antônio Jorge, é necessário regulamentar com mais clareza os princípios constitucionais que garantem ao cidadão o direito à saúde. “Temos pressupostos constitucionais que propõem um sistema universal e gratuito, com atenção integral. Isso, infelizmente, em várias situações, é quase interpretado como tudo para todos. Isso é inatingível, não só aqui como em qualquer sociedade, mesmo que muito rica”, avalia.
O parlamentar defende que se defina um padrão de integralidade, ou seja, regras mais claras sobre o que é possível incorporar ao SUS e aquilo que não deve ser incorporado. “Precisamos de um debate no Congresso Nacional. Talvez nem seja preciso mudar a Constituição, mas estabelecer por mecanismos infraconstitucionais esse compromisso de integralidade”, pondera.
Caso isso não ocorra, o deputado Antônio Jorge vê o perigo de um enfraquecimento progressivo do SUS, que se tornará, cada vez mais, um sistema para gente pobre, subfinanciado e quase inviabilizado. “É necessário envolver o cidadão na defesa do SUS. Não é o que acontece. As pessoas só veem defeito no SUS e o seu objetivo é não precisar dele. A pessoa ascende socialmente e o produto que ele quer é um plano de saúde. Não temos uma massa de opinião pública hoje que fale: não queremos plano de saúde, queremos um sistema público de saúde, decente”, adverte.
Associação Mineira de Municípios quer mudança na lei
A Associação Mineira de Municípios (AMM) participará do Ciclo de Debates Judicialização da Saúde, defendendo mudanças na legislação federal relacionada ao assunto. O presidente da entidade e prefeito de Pará de Minas (Região Central do Estado), Antônio Júlio (PMDB), considera urgente que se definam claramente as obrigações da União, do Estado e dos municípios na área da saúde e que os municípios só sejam obrigados a custear tratamentos e medicamentos incorporados pelo SUS.
Essa última proposta é semelhante a um dos itens da chamada “Agenda Brasil”, apresentada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), à presidente Dilma Rousseff no dia 10 de agosto. Calheiros propôs, no documento, “aperfeiçoar o marco jurídico e o modelo de financiamento da saúde. Avaliar a proibição de liminares judiciais que determinam o tratamento com procedimentos experimentais onerosos ou não homologados pelo SUS.”
Muitos gestores municipais e estaduais de saúde defendem algum limite para as ações judiciais porque elas comprometem uma parcela cada vez maior dos orçamentos. Dessa maneira, segundo o prefeito Antônio Júlio, programas que atendem toda a população são prejudicados, em benefício de poucos milhares de pessoas, beneficiadas pelas sentenças judiciais. “Eu tive casos, em minha cidade, em que gastei 10% do orçamento para atender um caso. Foram R$ 350 mil gastos com uma pessoa. Nós temos que ter recursos para atender todos os cidadãos. Você, às vezes, gasta para atender uma pessoa e deixa de atender 5 mil pessoas”, afirmou.
O deputado Antônio Jorge concorda que esse problema é grave e acaba aumentando a desigualdade do sistema, uma vez que nem sempre aqueles beneficiados pelas decisões judiciais são os que mais precisam. “Em Minas, nós temos alguns milhares de ações em andamento. São R$ 300 milhões gastos a cada ano com esses casos, em detrimento da Farmácia Básica, programa do Estado que atende 20 milhões de pessoas e custa metade disso”, pondera.
A ideia de restringir a obrigatoriedade do atendimento aos procedimentos incorporados pelo SUS, no entanto, é vigorosamente rejeitada por muitos especialistas da saúde e juristas, tais como o desembargador Renato Dresch, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), que integra o Comitê Executivo do Fórum Nacional da Saúde. “Eu tenho medo dessa proposta porque, quando se disser que a integralidade é o que está definido pelo gestor, daqui a pouco não teremos mais saúde. Nós acabaríamos com o direito à saúde”, afirma.
O presidente da Comissão de Saúde da ALMG, deputado Arlen Santiago (PTB), é totalmente contra qualquer restrição às ações judiciais. “Acho que é uma loucura. O direito à saúde é cláusula pétrea da Constituição Federal (CF). Se isso for aprovado, vamos entrar na Justiça para garantir esse direito”, afirma. Em sua avaliação, a incorporação de novas tecnologias pelo SUS já vem sendo cada vez mais dificultada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), órgão federal responsável por esse processo.
Desembargador defende alívio para prefeituras
Outra ideia defendida pela AMM, no entanto, é elogiada pelo desembargador Renato Dresch. A regra atual, explicitada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), é a solidariedade entre os entes federados na área da saúde. Não importa se o cidadão entrou com a ação contra a União, Estado ou município, a obrigação é compartilhada. O presidente da AMM se queixa de que o peso para os municípios é desproporcional.
“É preciso ter critério e definição de quem é a responsabilidade”, cobra Antônio Júlio. Para ele, é fundamental que a distribuição das obrigações seja proporcional à capacidade financeira de cada um dos três níveis de governo. Apesar de serem obrigados a gastar 15% de sua receita com saúde, os municípios gastam hoje, segundo informações da AMM, entre 25% e 30%, em média. Proporcionalmente à arrecadação, é muito mais que Estados e a União. “No ano 2000, 60% do dinheiro aplicado no SUS veio do Governo Federal. Em 2014, essa parcela foi de 44,7%. A diferença ficou a cargo dos municípios e dos Estados, sendo que a União arrecada muito mais”, critica o deputado Arlen Santiago.
Renato Dresch concorda que a situação atual é injusta para os municípios. “Eu concordo com o STF quando ele diz que há obrigação solidária para instituir políticas públicas, de modo que, não havendo políticas públicas, os três respondem. Mas, a partir da criação da política pública, União, Estados e municípios devem regular muito claramente qual a responsabilidade de cada um. A partir desse momento, a responsabilidade está fracionada”, argumenta o desembargador.
Para ele, isso já está implícito no artigo 198 da Constituição da República. Dresch sugere que essa reivinidicação dos municípios poderia ser atendida por meio de uma provocação ao STF, para que ele se pronunciasse a respeito do artigo 198. “Eu fico muito sensibilizado com os municípios pequenos, que não têm capacidade orçamentária”, conclui.
Composição dos gastos em saúde no Brasil |
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Privado |
53% (planos e seguros: 22%; gastos de particulares: 31%) |
Público |
47% (federal: 23%; estadual: 13%; municipal: 11%) |
Dados de 2010 / Fonte: elaboração do TCE-MG a partir de PIOLA, Francisco Sérgio. Financiamento da Saúde no Brasil hoje e suas perspectivas para o futuro. 1° Ciclo de Simpósios sobre Saúde Pública - Financiamento e Sustentabilidade do SUS |
Esta é a segunda reportagem de uma série especial sobre a judicialização da saúde. A última matéria será publicada na sexta-feira (4/9).
Conceitos, expressões e termos usados com frequência